sábado, 9 de março de 2013

O legado da Copa





ILUSTRAÇÕES: ZUCA SARDAN
A Copa do Mundo no Brasil: qual o legado provável?
Marcelo Weishaupt Proni*

Quando o Brasil sediou a Copa, em 1950, não havia essa preocupação com legado, nem com os impactos econômicos dos gastos necessários para organizar o torneio. A construção do Maracanã, projeto gigantesco, certamente aumentou a demanda de material de construção, implicou em geração de empregos, contribuiu para a urbanização daquela região da cidade e ajudou a dinamizar momentaneamente a economia da Capital federal. Talvez o dinheiro gasto pelo governo na construção do Estádio Municipal (renomeado “Jornalista Mário Filho” em 1966) pudesse ter sido utilizado de outra forma – como afirmavam políticos de oposição –, mas a população carioca acabou legitimando a decisão de investir numa obra que encheu de orgulho a nação.
Não foi preciso construir ou ampliar outros estádios. Em São Paulo, já havia o Pacaembu; em Belo Horizonte, o Independência. Também foram usados: o estádio dos Eucaliptos em Porto Alegre, a Vila Capanema em Curitiba e a Ilha do Retiro no Recife (mas, a desistência de 3 seleções diminuiu o número de jogos). O Morumbi, o Mineirão e outros grandes estádios foram construídos bem depois.
Em 1950, estima-se que a população do Rio passava de 2,3 milhões de pessoas. O novo estádio, projetado para mais de 160 mil pagantes, tinha capacidade de receber todo tipo de público. Os torcedores ficavam divididos em torno do campo em 4 categorias principais: camarote, cadeira, arquibancada e geral. Um jogo de futebol no domingo à tarde era, como diria Nelson Rodrigues, uma festa “democrática”.
O maior legado da Copa de 1950 foi, sem dúvida, no campo esportivo. Em especial, o Maracanã se tornou o principal palco do futebol brasileiro e ampliou a arrecadação com bilheteria para os grandes clubes cariocas. De quebra, mostrou ao mundo a capacidade de engenharia do País e se tornou cartão postal da cidade maravilhosa. Provavelmente, o torneio ajudou a atrair turistas estrangeiros.
Naquela época, não havia caderno de encargos e a Fifa era mais flexível (o próprio Maracanã não estava totalmente pronto, durante a Copa). O futebol era considerado um espetáculo popular, mas ainda não tinha entrado na fase da televisão e do marketing.
Na era da globalização, a Copa do Mundo se transformou num megaevento transmitido ao vivo para centenas de milhões de telespectadores, exigindo uma organização de alta complexidade e propiciando uma diversificada fonte de receitas. Os contratos de exclusividade assinados pela Fifa passaram a requerer uma série de garantias. Desde 1990, o país escolhido para sediar o torneio teve de demonstrar que é capaz de oferecer perfeitas condições de trabalho para a imprensa e de treinamento para as delegações, além de oferecer estádios seguros e confortáveis para os torcedores e plenas condições para o transporte e hospedagem dos turistas vindos de todas as partes do globo.
A preocupação com legado e com os impactos econômicos derivados da realização de uma edição da Copa do Mundo é relativamente recente. Principalmente no caso de países em desenvolvimento, como a África do Sul e o Brasil, que apresentam infraestrutura insuficiente e precisam mobilizar elevados recursos para atender as exigências da Fifa. Tornou-se necessário legitimar o enorme gasto público necessário com a promessa de que a realização do torneio traz uma série de benefícios para a sociedade em geral.
Contudo, estudos efetuados posteriormente às Copas da Alemanha (2006) e da África do Sul (2010) indicam que os efeitos positivos para a economia nacional foram insignificantes, seja em relação ao crescimento do PIB ou à geração de empregos, e que mesmo o setor de turismo teve ganhos muito aquém dos projetados antes do torneio. As avaliações referentes à Copa de 2010 evidenciam certos efeitos negativos, em particular a ociosidade dos estádios (“elefantes brancos”) e os benefícios concentrados na classe média, em detrimento de gastos na área social que poderiam beneficiar a população mais pobre.
Por outro lado, a prestação de contas da Fifa e dos comitês organizadores locais demonstra claramente que a Copa do Mundo é um negócio bastante lucrativo. Aliás, há várias empresas (e empresários) que ganham muito com o megaevento.
As projeções oficiais sobre os impactos econômicos da Copa de 2014 são bastante otimistas e procuram realçar o potencial máximo de ganhos que poderiam decorrer da efetivação dos gastos previstos para a preparação da infraestrutura urbana nas 12 cidades sede e para a construção ou reforma de estádios, assim como dos gastos referentes aos turistas estrangeiros durante o megaevento. Porém, a literatura internacional vem demonstrando que os resultados efetivos da realização de uma edição da Copa, pelo menos do ponto de vista econômico, costumam ser bem mais modestos e beneficiar apenas alguns segmentos privilegiados.
É preciso mencionar que o torneio estabeleceu um cronograma para várias melhorias na área de transporte aéreo e urbano, mas muitas obras estão atrasadas e com o custo inflacionado. Embora exista uma expectativa justificável de que a Copa estimule o setor turismo no País, é provável que seus principais legados não sejam na área econômica.
Olhando do ponto de vista esportivo, tudo indica que a Copa vai ser um marco na história do futebol brasileiro, mais um passo na transição para um estágio mais avançado de organização empresarial. O futebol mudou bastante nas últimas décadas, tanto dentro como fora dos gramados. As novas arenas multiuso – o legado mais palpável – expressam a preferência por um tipo distinto de torcida.
Atualmente, o Rio tem mais de 6,3 milhões de habitantes, mas a capacidade de público do Maracanã encolheu para menos de 80 mil pessoas, todas sentadas em cadeiras numeradas. Em São Paulo, o Pacaembu está ficando obsoleto, ao passo que as novas arenas (Corinthians, Palestra) e o Morumbi reformado vão privilegiar um tipo de público mais exigente e comportado. Em compensação, por enquanto, os principais jogos ainda são transmitidos pela televisão aberta, dando a sensação de acesso democrático ao espetáculo.
Entretanto, o caríssimo orçamento das arenas projetadas para a Copa tem colocado em questão a necessidade de tais investimentos e a consequência das dívidas assumidas. Por exemplo, é difícil explicar a decisão do governo do Distrito Federal de gastar R$ 1,2 bilhão na reforma e ampliação do estádio Mané Garrincha, agora com capacidade para 70 mil espectadores. Têm sido realizados seminários para discutir a sustentabilidade econômica dessas arenas multiuso, mas há muita desconfiança em relação à ociosidade de estádios onde o futebol ainda não entrou na era empresarial, caso da Arena Pantanal, da Arena das Dunas, da Arena da Amazônia e do próprio Estádio Nacional. Estes projetos estão sendo financiados pelo BNDES, mas os governos estaduais é que vão pagar os empréstimos para viabilizar negócios privados.
Em suma, na nova etapa do futebol brasileiro, os três níveis de governo continuam sendo solicitados para apoiar a modernização da infraestrutura, para uma atividade que é cada vez mais dominada pela lógica econômica. Prevalecendo a racionalidade do mercado, o preço médio dos ingressos provavelmente vai aumentar, o que pode excluir definitivamente os torcedores de baixa renda. Inclusive, há quem defenda essa medida como estratégia para combater a violência entre torcedores. Ainda assim, alguns governos estaduais terão de custear a manutenção das arenas construídas e o governo federal será pressionado a renegociar as dívidas dos grandes clubes nacionais.
O futebol vai continuar sendo uma paixão nacional, elemento da nossa identidade coletiva, mas a Copa vai intensificar o processo de privatização do espetáculo, tendência que parece ser irreversível.
*Marcelo W. Proni – economista formado pela Unicamp, mestre em Ciências Econômicas e doutor em Educação Física, também pela Unicamp. Atualmente, é diretor associado do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit). Autor do livro A Metamorfose do Futebol e de vários artigos sobre economia do esporte. É torcedor do Botafogo de Ribeirão Preto
Colaboração: Gustavo Pereira (ex-aluno)

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