Lei frágil, Copa e novas arenas começam a devolver a cerveja aos estádios brasileiros
Por: Bruno Bonsanti
9 de março de 2015 às 20:20
Uma pesquisa do Ibope, em julho de 2012, encomendada pela Ambev, listou as paixões do brasileiro. A primeira delas é o futebol. A segunda é a cerveja. A terceira é futebol com cerveja. Ou seja, a união das duas primeiras é algo mais que bem-vindo para as pessoas. Essa combinação pode ser desfrutada em bares, churrascos com peladas e antes das partidas nos arredores dos estádios. Poucas vezes dentro desses estádios, pois é proibido vender bebidas alcoólicas durante os jogos no Brasil. Pelo menos por enquanto.
Durante a Copa das Confederações e a Copa do Mundo, a Lei Geral da Copa criou uma exceção para que um dos patrocinadores da Fifa pudessem vender seus produtos durante as partidas. Esse texto serviu aos interesses da organização do Mundial, e ainda criou um vácuo que está sendo aproveitado pelos legisladores para liberar o consumo e a comercialização de álcool nas arenas, do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte. Principalmente porque o artigo na lei federal que regula o assunto, o Estatuto do Torcedor, é frágil. O Mundial mostrou que torcida e cerveja podem conviver relativamente bem em determinadas circunstâncias. Não houve grandes incidentes, que pese a rivalidade entre seleções ser muito menor que entre clubes.
Um dos lugares em que se pode testar a tese é em Porto Alegre. Internacional e Grêmio protagonizam uma das maiores (potencialmente a maior) rivalidade do Brasil e estão sedentos para maximizar os ganhos com seus estádios modernos. Na capital gaúcha, a Câmara de Vereadores aprovou um projeto de lei de Alceu Brasinha (PTB) que libera a venda de álcool. O texto aguarda a sanção do prefeito José Fortunati (PDT), mas o Rio Grande do Sul tem uma lei estadual proibindo esse tipo de comércio durante os jogos.
A questão, porém, não é apenas de segurança ou ideologia. Ela envolve muito dinheiro. As cervejarias estão cada vez mais presentes no esporte, com patrocínios e naming rights, e querem vender os seus produtos. A exceção criada pela Lei Geral da Copa serviu à Budweiser, uma das principais parceiras da Fifa. A Itaipava paga R$ 10 milhões por ano ao governo da Bahia para associar a sua marca ao nome da Arena Fonte Nova. Meses depois do contrato ser assinado, uma lei foi aprovada pela Assembleia Legislativa autorizando a venda de bebidas alcoólicas no estádio baiano. O autor do texto foi o ex-deputado estadual João Bonfim (PDT), atualmente no Tribunal de Contas do estado. A Trivela tentou entrar em contato com ele, mas não foi respondida até o fechamento desta reportagem.
A Itaipava também comprou os direitos de nomear a Arena Pernambuco, e embora mais tímido, também há uma movimentação nesse estado para regularizar o comércio de bebida alcoólicas. No começo do ano passado, a Arena das Dunas, no Rio Grande do Norte, tentou o mesmo patrocínio, mas as conversas não caminharam. Em abril, a então governadora Rosalba Ciarlini sancionou lei regularizando a venda da substância. Limita em 43% o nível de álcool, o que engloba também bebidas destiladas como whisky e pinga.
“Eu acho que é uma pressão econômica muito grande”, afirma o professor Mauricio Murad, especialista em sociologia do esporte e coordenador de uma pesquisa na Universidade Salgados Oliveira, de Niterói (RJ), chamada Álcool e violência no futebol. Ele também é o autor do livro Para entender a violência no futebol. “As cervejarias são muito fortes, o lobby junto ao poder legislativo é muito grande”.
Os clubes brasileiros modernizaram os seus estádios e precisam de todas as rendas que conseguirem para pagar as contas. O diretor de negócios da área de entretenimento da Odebrecht Properties, parte do consórcio que administra a Fonte Nova, a Arena Pernambuco e o Maracanã, estima um prejuízo de R$ 10 por torcedor por causa da proibição. Ou seja, se o público for de 20 mil pessoas, R$ 200 mil a menos no faturamento. “As arenas administradas pela Odebrecht Properties cumprirão o que for determinado pela legislação”, respondeu a empresa à reportagem da Trivela, ao ser questionada sobre o que acha do assunto.
Há uma corrente forte na defesa de que não vender cerveja faz os estádios e os clubes perderem dinheiro, e ainda tem pouco efeito prático porque as pessoas podem beber antes de passar pelas catracas, causando tumulto nas catracas e nos arredores do estádio. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas calcula que uma em cada quatro cervejas bebidas no país tem relação com o futebol, o que mostra que a ausência das geladas no estádio não tem impedido muitas pessoas a consumirem o produto quando vão ao jogo. Um fator importante para a economia nacional, pois essa pesquisa da FGV aponta que R$ 338 milhões são gerados no País a cada R$ 100 milhões gastos com cerveja.
O que proíbe? E será que proíbe mesmo?
Não existe necessariamente uma relação de efeito e causa entre a presença das cervejarias e a modernização dos estádios com as tentativas de liberar a venda de álcool nos estádios. Pode ser apenas coincidência. Ou, no momento em que precisam maximizar as rendas, os gestores tenham percebido que não existe, de fato, uma lei que impeça a boa e velha cervejinha nas arquibancadas.
O que de fato interrompeu a venda de bebidas foi um Termo de Adendo ao Protocolo de Intenções, termo pomposo para um acordo entre a CBF, ainda com Ricardo Teixeira, e o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais da Justiça, em 2008. Nenhum deles tem poder legislativo, diferente do Estatuto do Torcedor, que versa sobre o assunto no artigo 13-A, sobre as condições para “acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo”:
“Não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência”.
O Estatuto do Torcedor é ignorado com irritante frequência por aqui. Os clubes, por exemplo, querem fazer isso para que o Campeonato Brasileiro volte a ser disputado no sistema de mata-mata. Mas, acima de tudo, o artigo é muito vago e passível de interpretação. E não pode ser assim. “Qualquer norma restritiva tem que ser objetiva”, afirma o advogado Pedro Trengrouse, consultor das Nações Unidas sobre legislação esportiva, coordenador de uma pós-graduação sobre o tema na FGV e ex-representante de clubes como Fluminense, Flamengo e São Paulo. “Tem que dizer o que não pode. Não cabe interpretação. Para normas restritivas, o princípio é não interpretar. A interpretação tem que ser literal”.
É com essa brecha que a Odebrecht justifica a venda de cervejas na Fonte Nova, de acordo com a Lei Estadual do ex-deputado João Bonfim. “É importante destacar que não existe ‘lei nacional’ que regulamenta ou impeça o consumo de bebidas alcoólicas dentro dos estádios”, explica. “O Estatuto do Torcedor é a lei federal que mais se aproxima da abordagem do tema, mas o texto não regulamenta a questão, nem proíbe expressa ou diretamente a venda de bebidas alcoólicas”.
A hierarquia das leis está sendo bastante discutida em Porto Alegre porque o projeto de lei do vereador Alceu Brasinha anularia uma lei estadual que proíbe a comercialização de álcool nos estádios. Um parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Municipal da capital gaúcha alega que é competência do município “exercer o papel de polícia administrativa nas matérias de interesse local”. Ou seja, nesses casos poderia ignorar leis superiores, como estaduais e federais. Eduardo Carrion, professor de direito constitucional da UFRGS, defendeu em entrevista à Zero Hora, que se trata de um caso de saúde pública e, portanto, vale a lei do mais forte.
Antes de ficar famoso por montar listas de suspeitos de corrupção, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, deu o seu pitaco sobre o assunto. Entrou com uma “ação direta de inconstitucionalidade” no Supremo Tribunal Federal contra a lei baiana porque ela “extrapola os limites da competência legislativa concorrente”. Em juridiquês, isso significa que a Assembleia Legislativa do estado não pode contradizer a legislação federal, no caso, o Estatuto do Torcedor. “Foi não só inconstitucional como extremamente infeliz e sociologicamente inadequada. A permissão contida na lei baiana expõe a riscos a segurança e a integridade dos torcedores-consumidores e dificulta fortemente a prevenção de episódios de violência em tais eventos e a repressão a eles”, justifica. Mas será que dificulta mesmo?
O que o álcool tem a ver com a violência?
O professor Murad tem em mãos relatórios médicos que comprovam: o álcool acentua a violência nas pessoas, em todos os âmbitos, do trânsito ao futebol. A conta, portanto, é simples. Quanto mais agressividade, maior a possibilidade de confrontos dentro dos estádios. Não deveria ser assim, mas os jogos são, de fato, ambientes já propensos a brigas por causa da rivalidade e da tensão.
“O controle do álcool é necessário”, afirma. “Não é milagroso, mas somando-se a outras medidas, pode contribuir para o fim da violência nos estádios. Eu costumo dizer que a violência no futebol é complexa e multi-facetada. Como não tem causa única, não tem solução única. Agora, não adianta a hipocrisia de proibir a bebida dentro dos estádios e vender na porta. Precisa haver um controle dentro e fora, em um raio grande. O padrão internacional prevê cinco quilômetros.”
Porque é exatamente o que costuma acontecer. Os torcedores fazem um “esquenta” na entrada dos estádios antes das partidas. O que é mais problemático do que parece, pois as consequências de beber fora do ambiente controlado dos estádios são piores porque são mais difíceis de serem controladas. As pessoas consomem mais porque o efeito precisa durar 90 minutos; entram todos ao mesmo tempo e de última hora, causando tumultos nas catracas; consomem longe dos estádios, onde não há aparatos de segurança para controlar potenciais brigas. Por isso, Trengrouse considera que vender cerveja seja melhor. “Fiz um estudo sobre isso, inclusive levando em consideração a experiência inglesa, a mais bem documentada sobre o assunto, e percebi que a restrição ao consumo de bebida alcoólica no estádio é prejudicial à segurança pública”, afirma.
A proposta de Murad para evitar os danos do consumo fora do estádio é polêmica: um bafômetro para impedir o acesso de pessoas alcoolizadas aos jogos de futebol. O estádio Nicolas Leoz, em Assunção, usa esse artifício, e em 2013, palmeirenses foram impedidos de assistir ao duelo do time deles contra o Libertad. “Uma medida complementa a outra: proibição dentro do estádio, controle fora do estádio e bafômetro para a entrada”, explica o pesquisador. “Acho que a experiência do bafômetro no trânsito tem sido vitoriosa nesse sentido. Aqui no Rio de Janeiro, a Lei Seca diminuiu em mais de 70% os índices de violência e acidentes no trânsito. É algo a se pensar.”
O hooliganismo inglês, citado por Trengrouse, sempre foi muito creditado ao álcool, tanto que uma lei proibiu o consumo dessa substância “no raio de visão do campo” em 1985. Ou seja, o torcedor pode beber à vontade nas lanchonetes e nos corredores, mas será punido se levar o copo ao assento. Não faz muito sentido, e o que conseguiu dar um jeito nos briguentos ingleses não foi essa determinação, mas o Relatório Taylor, publicado quatro anos depois, por causa da Tragédia de Hillsborough.
O pesquisador inglês Geoff Pearson analisou o comportamento dos torcedores britânicos para um estudo chamado “Uma etnografia dos torcedores ingleses – latinhas, policiais e carnavais” chega às mesmas conclusões de Trengrouse. Além disso, questiona porque torcidas com fama de beberem bastante, como os escoceses, os irlandeses e os dinamarqueses, não são particularmente violentas. Nessa mesma linha de raciocínio, por que não existem brigas frequentes em jogos de rúgbi e críquete, nos quais o álcool compõe a tradição do esporte?
“Tem muito tabu e nenhuma objetividade nessa questão”, continua Trengrouse. “Não há nenhuma relação entre cerveja e violência no estádio, nenhum estudo que comprove isso. No Mineirão, há um estudo que mostra que depois da restrição houve um aumento de delitos relacionados à bebida. Os grandes problemas que o futebol mundial viveu nos últimos anos não tiveram nada a ver com bebida”.
No Brasil, a maioria das mortes não teve sequer a ver com o jogo. De acordo um levantamento do jornal LANCE!, apenas nove das últimas 275 mortes ligadas ao futebol aconteceram dentro dos estádios. A última foi em 2007, no Mineirão. Para Murad, o álcool contribui para a criação de um ambiente de agressividade que acaba causando mortes e violência nos caminhos de ida e volta para o estádio. “A população pacífica fica ao sabor dessas facções minoritárias que são gangues dentro das organizadas, onde há muito consumo de drogas e de armas brancas”.
A conta, para ele, mais uma vez é simples: a liberdade individual de tomar uma cerveja durante o jogo não compensa os malefícios que o álcool pode levar ao estádio de futebol. “Quando houve a proibição de fumar dentro do avião, falavam do direito da pessoa, que não conseguiria passar tanto tempo sem fumar. Hoje as pessoas ficam, porque se constatou, por pesquisas médicas, que o malefício pode ser muito maior que aquele direito” exemplifica. “Acho uma comparação possível a se fazer. O controle, em um primeiro momento, pode ser até um pouco excessivo, mas um excesso que pode ser flexibilizado”.
O excesso no outro lado da história é o cerne da questão para Pedro Trengrouse. Ele lembra que a embriaguez ainda é uma contravenção penal e que o consumo exagerado de álcool é o ponto fora da curva. E é muito mais fácil controlar o beberrão dentro das dependências do estádio do que na rua. “A diferença entre o remédio e o veneno é a dose”, filosofa. “Qualquer coisa em excesso pode ser prejudicial à saúde. Se o problema é o excesso, vamos combater isso controlando. É muito mais fácil controlar dentro do estádio, quando você sabe o que está vendendo, qual o preço que está vendendo.”
São duas visões para combater a violência no futebol brasileiro. De vez em quando, o álcool pode contribuir para ela, embora a bebida seja um protagonista ocasional, aquela estrela que aparece em uma ou duas cenas de uma temporada. As torcidas organizadas brigam porque gostam de brigar, com ou sem cerveja, dentro ou fora do estádio, no Brasil ou em Marte. E como frisou Trengrouse, nenhum estudo conseguiu relacionar diretamente a proibição à queda da violência no esporte. Afinal, quase sete anos depois, continuamos com as mesmas discussões, na mesma missão ingrata de controlar a estupidez das pessoas. E às vezes elas serão estúpidas, estejam bêbadas ou sóbrias, e isso é muito difícil de evitar.
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