domingo, 5 de junho de 2011

Brasil é um anfitrião refém das exceções


SÉRIE: BRASIL QUE POUCO REVELA

Sem uma política pública para o esporte, país-sede dos Jogos Olímpicos-2016 tem metas ambiciosas para o quadro de medalhas, mas ainda se vê dependente de talentos individuais esporádicos, como Cesar Cielo




Ary Cunha, Carol Knoploch
e Sanny Bertoldo

Previsões de orçamento e organograma de obras à parte, a meta para o quadro de medalhas na Rio-2016 já está traçada e, para os nossos padrões olímpicos, não tem nada de modesta. Pelas projeções do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), o Brasil quer ficar entre os dez melhores países na classificação geral dos Jogos Olímpicos dos quais será sede. Fazendo uma comparação prática, significa dizer que teria de ocupar o lugar que foi da Ucrânia em Pequim-2008, com 27 medalhas no total, sendo sete de ouro. Isso é quase o dobro das 15 que a delegação verde-amarela trouxe de volta na bagagem, sendo três de ouro, além do 17º lugar no quadro de medalhas.

Em um país sem uma política pública para o esporte, mas onde os recursos federais jorram de forma crescente — só através da Lei Piva foram R$142 milhões no ano passado —, a fábrica de talentos de primeira linha só produz em larga escala no futebol, a verdadeira paixão nacional, e no vôlei. Fora isso, são raros ídolos de primeira grandeza e muitos talentos que se perdem pelo caminho. É o Brasil que pouco revela, como vai mostrar a série de reportagens aos domingos que O GLOBO inicia hoje.

— A estrutura do Brasil é bem fraca, não tem o básico, o mínimo para desenvolver o esporte — critica Cesar Cielo, único atleta brasileiro a reinar absoluto em sua modalidade desde as últimas Olimpíadas. — É difícil apontar os “medalháveis” para 2016. Tem o vôlei, a natação, e destacaria também o judô.

Cultura coletiva

Para o superintendente executivo do COB, Marcus Vinícius Freire, não basta apenas julgar o sucesso de um ciclo olímpico pelo número de medalhas conquistados. Segundo ele, é preciso levar em conta a evolução do Brasil em número de finais disputadas, além do fato de, tradicionalmente, a prática esportiva no país ser muito mais voltada para modalidades coletivas.

— O Brasil tem uma cultura de esporte coletivo que não podemos negar. Gastamos dinheiro, trabalhamos e investimos em vôlei, basquete, futebol, handebol, masculino e feminino — analisa ele. — Então, vale lembrar que, dos 277 caras que foram a Pequim nesses esportes, mais de um terço da delegação participou de uma final olímpica (41 finais, com 106 atletas brasileiros envolvidos). Precisamos continuar ganhando nas modalidades em que temos história, como vôlei, vôlei de praia, iatismo, judô, futebol, natação e atletismo. E temos que achar outras seis modalidades que possam ganhar medalha para ficarmos entre os dez.

Bronze em Atlanta-1996, a ex-atacante de vôlei Ana Moser acredita que o quadro de medalhas reflete os erros na formação de talentos, mas ressalta que o legado esportivo de 2016 precisa ser bem mais amplo do que um lugar entre potências olímpicas.

— Eu terei vergonha se chegarmos em 2016 com um Brasil onde apenas 20% das crianças praticam atividade física, que é a estatística atual — dispara. — A gente não tem um sistema de desenvolvimento de atletas. Quem surge é algo eventual. O vôlei só é exemplo lá em cima. É uma elite desenvolvida. Infelizmente, nossa cultura esportiva tem de mudar. Não está presente nas escolas, nas famílias e na cabeça dos governantes.

Crítico ferrenho da distribuição desigual de recursos entre as modalidades, o presidente da Confederação Brasileira de Tênis de Mesa (CBTM), Alaor Azevedo, é outro a defender uma mudança radical em todos os níveis.

— Falta uma política pública para o esporte. Não se definiu no Brasil se o esporte vai ser praticado em clubes ou na escola. Essa é a primeira coisa a ser feita, de cara. Nos Estados Unidos, tudo vai da escola para a universidade. Na França, os atletas surgem nos clubes. Por aqui, até há pouco tempo, seis modalidades detinham 80% do dinheiro público, entre patrocínios estatais e Lei Piva — afirma. — Talentos surgem o tempo todo, mas a maioria acaba não sendo aproveitada. No Brasil, o atleta de ponta acaba sendo um acaso. Não é regra, é exceção.

Tão surpreendente como o surgimento de um Gustavo Kuerten num país de poucos investimentos na formação de tenistas, é a ascensão da campeã mundial indoor do salto com vara, Fabiana Murer. Nos dois casos, boa parte dos méritos deve ser atribuída à persistência de seus técnicos: Larri Passos, no caso de Guga, e Elson Miranda. O treinador e marido da saltadora revela um dado que deveria incentivar a prática esportiva maciça: nem todo talento é nato.

— A Fabiana Murer não era uma exceção quando começou a saltar — admite Miranda, que cansou de tirar dinheiro do próprio bolso para manter o trabalho com a atleta. — Ela foi treinada e desenvolvida, mas demorou dez anos para começar a ter nível internacional. Assim como ela surgiu e pode ser medalha nas Olimpíadas de 2012, outros poderiam surgir.

O exemplo Guga está aí para provar que nem sempre o surgimento de ídolos no Brasil consegue impulsionar de vez uma modalidade.

— Vivemos de ídolos esporádicos. Temos uma gestão efeito cascata, que vem de cima para baixo, onde cada um faz o que acha certo e vai levando. Sofremos com apoios apenas em anos importantes e não conseguimos vislumbrar algo a longo prazo. Em esportes sem história, sem atletas vencedores, com os quais eu trabalho hoje, é bem mais difícil. Um espelho gera mobilização maior. Mas é fato que o esporte vive de ídolos esporádicos e que, às vezes, não consegue explorá-los — admite a ex-jogadora de basquete Magic Paula, prata em Atlanta-1996, e que hoje comanda um programa de patrocínio estatal a cinco confederações que jamais tiveram um grande incentivo (boxe, levantamento de peso, taekwondo, esgrima e remo).

Timidez na iniciativa privada

A distribuição de recursos do Ministério do Esporte é alvo de críticas até mesmo de outros órgãos públicos, como o Tribunal de Contas da União (TCU). Numa auditoria divulgada em fevereiro, o tribunal alertou para a diminuição dos investimentos nos principais projetos voltados ao esporte de alto rendimento. E também condenou o fato de boa parte dos recursos do Bolsa Atleta (33%) serem voltados para modalidades não olímpicas e desconhecidas, como kung fu, kickboxing, bocha, luta de braço e até punhobol. Mas há quem lembre que, pior do que os critérios questionáveis de divisão da verba federal, é o apoio excessivamente tímido da iniciativa privada.

— A Lei de Incentivo Fiscal é um belo projeto de intenção. Mas é mal aplicado, porque as empresas não promovem estes projetos. Não sabem e o governo não ensina a usar. O medo e o desconforto com a burocracia de trabalhar com algo do governo impedem muita empresa de entrar no negócio — diz o ex-nadador Gustavo Borges, dono de quatro medalhas olímpicas.

Quem conhece de perto o trabalho de uma grande potência olímpica sabe que ainda há muito a ser feito. E, o mais grave: que já pode ser tarde para acreditar num divisor de águas em 2016. Medalhista de ouro nos 800m em Los Angeles-1984 e prata em Seul-1988, Joaquim Cruz atualmente treina a equipe paraolímpica de atletismo dos Estados Unidos. Ele vê o Brasil caminhando a passos lentos.

— Está tarde para 2016, sim. Podemos dar vexame, mas também alegrias. O ideal é trabalhar com dez anos de antecedência, mas não podemos desistir. Que tudo isso seja o início. Não temos esporte nas escolas, não temos políticas esportivas e não temos cultura de campeonatos fortes anuais... Fica difícil.
Jornal: O GLOBOAutor:  
Editoria: EsportesTamanho: 1321 palavras
Edição: 2Página: 7
Coluna:Seção:
Caderno: Caderno de Esportes

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