sábado, 22 de outubro de 2011

O monopólio da janela de vidro


Acho que estou ficando velha.

Sinto essa sensação com muita intensidade quando estudo história com meu filho ou enteados e o tema da lição é algum episódio que vivi e presenciei não apenas como espectadora, mas na condição de protagonista revivendo todas as emoções detonadas por eles. Espectadora, na condição de quem assiste a um espetáculo e não de expectadora, aquela que tem expectativa.

Foi assim na Copa de 70. Lembro da vizinhança toda em nossa casa assistindo a final Brasil x Itália. Meu pai trabalhava na AEG Telefunken, uma das únicas fábricas de TVs no país, e por isso tivemos a oportunidade de ter a primeira TV em cores da rua. Era um caixotão que ocupava meia sala por conta de seu “tubo” que a fazia o aparelho ter 50×50x50 cm. Impensável um equipamento daqueles nas casas contemporâneas nas quais as TVs estão estampadas na parede como se fosse um quadro ou mais uma janela. Seo Paulo, um de nossos vizinhos que adorava fazer molecagens, preparou sacos e sacos de jornal picado para comemorar os gols que ele tinha certeza que aconteceriam. Lembro dele comemorando com um motorista de ônibus que passou em frente de nossa casa bem na hora de um dos gols e do dia seguinte, quando chegamos na escola: naquele dia não tivemos aula, condição res ervada aos dias de feriado nacional, estadual ou municipal. Embora em casa discutíssemos política intensamente, naqueles meus 8 anos de vida, eu não era capaz de fazer qualquer análise sobre o uso daquele evento para encobrir toda a barbaridade que a ditadura militar fazia então.

Mais curioso ainda é ver essa galerinha estudar sobre a Campanha das Diretas Já, essa sim presenciada de forma intensa na minha maioridade. Desde que fui fazer cursinho no Poli, ainda no Bom Retiro, participei ativamente do movimento estudantil, da reorganização da UMES e da UBES, dos primeiros congressos da UNE pós ditadura, das passeatas pela Anistia, e óbvio, daquela manifestação inesquecível na Praça da Sé quando 300 mil pessoas se reuniram para mudar o país e a história de nossos meios de comunicação. Já naquela época a Rede Globo era a senhora toda poderosa da audiência nacional e não dava qualquer notícia sobre esse tipo de evento na cidade. E olhe que não foram poucos. Até chegar o comício dos 300 mil ocupamos a Praça da Sé várias vezes com a presença de muita gente ilu stre e milhares de militantes de diferentes formações políticas. E a Globo, nada. Mas, naquele dia 25 de janeiro de 1984 foi diferente. Lembro de sair do metrô com muito esforço porque não havia um lugar disponível para ficar. Tudo estava tomado. E claro, todas as emissoras de TV estavam lá. Não era possível mais negar. E de forma cínica naquela noite uma nota no Jornal Nacional noticiava o comício que levaria às eleições diretas depois de mais de 20 anos de ditadura.

Nesse período eu já tinha me formado em jornalismo e tinha noção do que representava o monopólio da comunicação e a força que algumas emissoras começavam a ter sobre os eventos esportivos. Anos depois lendo obras como Os senhores dos anéis, de Vyv Simson e Andrew Jennings, e Invasão de campo, de Barbara Smit é que pude ter a dimensão exata do que ocorria. Lembro, por exemplo, na Copa de 82, quando a Globo tinha a exclusividade de transmissão do mundial, de pessoas como o Silvio Luis, na Band, narrar os jogos do Brasil pelo rádio como se fosse para TV. E nós, espectadores avisados, assistíamos a imagem da Globo e ouvíamos a voz do Silvio Luis. Era mais do que uma forma de burlar os narradores chatos e tediosos. Era uma forma de manifestar descontentamento à falta de opção. E foi dessa forma que vimos os pênaltis perdidos e a desclassificação daquela seleção de Telê Santana que contava ainda com nada menos que Sócrates, Toninho Cerezzo, Zico, Falcão, Edinho.

Parece que nos conformamos desde aqueles tempos a ver Jogos Olímpicos e Copa do Mundo, assim como a Fórmula 1 na fase áurea de Senna, Piquet e Fittipaldi, como uma exclusividade da Globo. Pior ainda é que endossamos o argumento de que eles “acumularam conhecimento e tecnologia” para fazerem transmissões exemplares… como as novelas. Incrível nossa capacidade de acomodação e negociação cordial.

Pois bem. Pouco tempo atrás, para surpresa de todos nós, a Record ganhou o direito de transmissão dos Jogos Panamericanos e Jogos Olímpicos de 2012. Observei no início como a Record se aproximou de alguns jornalistas competentes e experientes no ramo para compor a equipe para esse desafio olímpico, no sentido estrito da palavra. Senti um calafrio ao pensar no que o monopólio incompetente (se é que existe inteligência no monopólio) poderia causar à transmissão de eventos tão complexos como o Pan e os Jogos Olímpicos.

Não é preciso ser da área para saber que não existe informação sem linha editorial. Aquilo tudo que assistimos e ouvimos tem uma direção que é dada por quem está no “controle da nave mãe”. Diretas Já ou Jogos Olímpicos, tanto faz, quem faz a pauta sabe bem o que quer que se informe a respeito do fato transmitido. E já na fase anterior ao Pan pude pressentir que teríamos que lidar com um tipo de transmissão pobre em informação, precária em análise e sofrível no conteúdo. Não bastava colocar o Álvaro José com toda sua experiência em eventos esportivos como o timoneiro dessa empreitada, nem levar atletas consagrados em suas modalidades para fazer os comentários das competições. O problema é a linha editorial.

Quem é da educação sabe o que significa capacitação. Em parte isso quer dizer que o conhecimento não se adquire de forma natural, espontânea. Que um bom profissional, em qualquer área de atuação, precisa ser preparado para seu ofício. E, em comunicação, isso quer dizer saber fechar a boca para não falar bobagem. As besteiras que produzimos em rodas de amigos, e que servem para diversão de um pequeno grupo, ganha dimensão catastrófica quando disparada por um veículo que atinge milhões de pessoas.

É assim que percebo essa transmissão do Pan: amadora, despreparada, sem linha editorial, superficial, perdida. A função primeira que seria informar não está sendo cumprida. Sinto que o que ganhamos de público para o esporte, ao longo desses anos, acabamos perdendo nesses dias, pela falta de qualidade da transmissão. É preciso gostar muito de esporte, ou ter a necessidade de se informar com o que se tem, para poder acompanhar com afinco as transmissões desse Pan 2011.

Mas não paro aqui. Vejo que, assim como em 1984, a Globo faz de conta que nada está acontecendo. Serão necessários outros 300 mil na Praça para que algo seja apresentado no Jornal Nacional? Ao invés de ter aprendido com Silvio Luis como driblar as imposições da concorrente prefere ignorar o feito de nossos atletas, mostrando que o importante são os negócios e não o esforço cotidiano para se chegar a uma medalha. É inegável a importância dos meios de comunicação para a circulação da informação e a conseqüente consagração de feitos na sociedade contemporânea. O esporte, mais do que qualquer outra atividade, depende da mídia. Mais do que uma competição entre pessoas altamente habilidosas, o esporte é um bem cultural, um espetáculo, um produto complexo que envolve inúmeros interesses. O silêncio da Globo soa quase como um boicote, não ao espetáculo, mas ao atleta, o protagonista do espetáculo esportivo.

Onde está o discurso patriótico e ufanista produzido no Pan de 2007 ou em outros campeonatos de importância semelhante? O Tiago Pereira já não é o rei do Pan? As performances de Cielo já não são tão impressionantes, muito embora ele seja capa de jornais mundo afora? E os ouros das meninas do vôlei de quadra e de praia já não são tão preciosos quanto no passado? Não há o que se noticiar sobre a organização do evento?

Enfim, uma vez mais observamos um desserviço à informação. Atitude de criança pequena que quando excluída da brincadeira pega seu brinquedo e sai emburrada impedindo que outros brinquem. E não adianta daqui a alguns dias, caso isso seja revisto, tentar trazer ao público aquilo que se deixou de informar. A notícia, nos dias atuais, é acompanhada em tempo real. Devemos esse favor à internet e àqueles que a utilizam para cobrir os furos deixados por redes que durante gerações monopolizaram a informação e o conhecimento. E que isso nos sirva de alerta para o que está por vir em 2012. Quem quiser acompanhar os Jogos Olímpicos de Londres que comece a pensar em formas criativas para não morrer de tédio ou de raiva diante da janela de vidro.

http://blog.cev.org.br/katiarubio/

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