sábado, 24 de agosto de 2013

Na Bienal do Rio, futebol e literatura entram em campo juntos

Com abertura marcada para quinta-feira, dia 29, a 16ª edição da Bienal do Livro do Rio tem como maior novidade um espaço dedicado a debates sobre futebol e literatura. Em um aquecimento para os bate-papos, escritores, jornalistas e pesquisadores falam sobre a relação entre o mundo das letras e o esporte das multidões no Brasil
Por Leonardo Cazes
Os caminhos do futebol e da literatura nunca se cruzaram muito no Brasil. Apesar de não faltarem escritores apaixonados pelo esporte, há um consenso de que, com exceção da crônica, a produção literária sobre o tema ainda é pequena se comparada com o tamanho da devoção do país pelo universo da bola. Mas, às vésperas da Copa do Mundo de 2014, houve uma mudança nesse quadro: novos romances engrossam a lista de obras sobre o tema e a Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, que começa na quinta-feira, terá um espaço exclusivo, o Placar Literário, para falar de futebol em suas múltiplas dimensões. O próprio mercado editorial parece estar fazendo as pazes com o esporte, pois nunca se lançou tantos livros sobre jogadores, clubes e campeonatos, ressalta João Máximo, jornalista do GLOBO e curador do espaço.

Historicamente, a relação entre futebol e as letras nunca foi propriamente tranquila. Bernardo Buarque de Hollanda, professor da Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e que conversará com José Miguel Wisnik sobre “Amor e ódio na arquibancada”, no dia 1º de setembro, às 16h30m, destaca alguns momentos emblemáticos. O primeiro foi no final da década de 1910, quando o Brasil viveu um grande boom do esporte após a conquista do campeonato Sul-americano, em 1919, com uma vitória de 1 a 0 sobre o Uruguai no Estádio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. O título coincidiu com uma série de greves gerais e a organização do movimento operário, de onde sairiam os futuros ídolos esportivos.

— Os intelectuais e simpatizantes dos movimentos anarquistas e comunistas associam o futebol de fábrica à estratégia de distração dos trabalhadores pelas classes dirigentes, disseminando um profundo ceticismo sobre o esporte, tal como aparece na obra de Lima Barreto no início dos anos 1920 — afirma o professor.


Falsos inimigos da bola

A antipatia de Lima Barreto será, inclusive, tema de uma das mesas do Placar Literário. No dia 2 de setembro, às 18h30m, Dênis de Moraes, biógrafo de Graciliano Ramos, e Joel Rufino dos Santos participarão do debate “Graça e Lima, os falsos inimigos da bola”. Máximo conta que a rejeição de ambos ao esporte foi mal interpretada. No caso de Barreto, que chegou a fundar uma liga contra o futebol, sua raiva era justificada pelo caráter elitista da atividade na época. O primeiro clube a aceitar amplamente os negros em sua equipe, por exemplo, foi o Vasco da Gama, na década de 1920. Em 1914, o Fluminense chegou a escalar um jogador negro, Carlos Alberto, mas o obrigou a entrar em campo utilizando pó-de-arroz no rosto para disfarçar a sua cor. É daí que vem o apelido que o tricolor carrega até hoje.

— O Lima Barreto não foi contra o futebol, ele foi contra uma instituição que marginalizava os negros na sociedade, como ele. Ele chegou a esculhambar o próprio presidente da República que era contra a convocação de negros e mulatos para a seleção. Outra grande lenda que corre até hoje é que Graciliano Ramos previu que o futebol não vingaria no Brasil. Esse artigo que ele escreveu no início dos anos 1920, com o pseudônimo de J. Calisto, foi publicado num jornal de Palmeira dos Índios (AL). Na época, tentava-se introduzir o futebol na cidade, imitando os grandes centros onde ele já era popular. Quando Graciliano diz que o futebol não ia vingar aqui, ele se referia à cidade, não ao país — defende Máximo.

O principal retrato desta época é o livro “O negro no futebol brasileiro”, de Mário Filho, lançado em 1947. Para o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, este é o grande romance sobre futebol escrito no país, apesar de não ser uma obra de ficção. Rodrigues, que lança em setembro “O drible” (Companhia das Letras), afirma que o livro de Mário Filho é um “romance de não ficção”, pegando emprestado a expressão com que Truman Capote definia o seu “A sangue frio”, clássico do new journalism americano. O escritor chama a atenção para a linguagem de crônica e a enorme galeria de personagens e suas histórias apresentados na obra.

Bernardo Buarque de Hollanda enumera outras obras sobre futebol pouco conhecidas, como “Água-mãe”, publicada em 1941, de José Lins do Rêgo. Ela narra a melancólica trajetória de um craque dos gramados que é esquecido quando se contunde e se vê obrigado a abandonar o campo. Hollanda cita ainda “O sol escuro”, lançado em 1967, de Macedo Miranda, e o conto “O dia em que o Brasil perdeu a Copa”, de Paulo Perdigão, em 1975. O texto de Perdigão ficou mais conhecido por sua adaptação cinematográfica feita por Jorge Furtado e Anna Azevedo.

Apesar dos exemplos, o número é modesto. Sérgio Rodrigues, que participará da mesa “Gols de letra: dois romances” com Hélio de la Peña no dia 31 de agosto, às 18h30m, faz uma comparação com outros países e esportes para mostrar que o descompasso entre a paixão nacional e produção literária não é só coisa nossa.

— Os casos são mesmo escassos, principalmente quando se leva em conta a força do futebol no país. Só não sei se faz muito sentido esse raciocínio que busca paralelos simplistas entre cultura esportiva e cultura literária. Não conheço o grande romance italiano de Fórmula 1 ou o grande romance japonês de sumô. Talvez porque o esporte seja um sistema narrativo completo, que não só prescinde de novas linguagens como tende até a rejeitá-las — diz o escritor.

“O drible”, segundo Rodrigues, foi o seu romance mais trabalhoso e o que mais tempo levou para ser escrito. No primeiro capítulo da edição inglesa, já lançada, divulgado no site “Bookanista”, pai e filho dissecam o vídeo do quase gol mais famoso da História. Na partida entre Brasil e Uruguai, na Copa de 1970, Tostão acerta um passe perfeito para Pelé, que disparava pela direita. O craque dribla o goleiro Mazurkiewicz, chuta, mas a bola vai caprichosamente para fora. Na opinião do escritor, para acessar esse “sistema narrativo completo” do futebol através da literatura é preciso tratá-lo como personagem.

— Este livro foi, disparado, o mais trabalhoso e que levei mais tempo escrevendo, mas não sei separar as dificuldades impostas pelas questões futebolísticas dos problemas que me trouxe a atribulada relação entre pai e filho que está no centro da trama. Na verdade, acho que a dimensão do futebol foi até mais fácil de resolver. Acredito que a chave para acessar o futebol ou qualquer outro esporte na literatura seja, em vez de fazer deles o tema propriamente dito, tratá-los quase como personagens. Quando chegamos de viés em sua grandeza, ele já não intimida tanto — argumenta.

Michel Laub, que lançou em 2006 o romance “O segundo tempo” (Companhia das Letras), aponta outras dificuldades. Na sua obra, a semifinal do Campeonato Brasileiro de 1987 entre Grêmio e Internacional, conhecido como “Gre-Nal do século”, atravessa o drama do garoto de 15 anos que assiste a família desmoronar. Apesar do desempenho do seu time não ser suficiente para o isolar dos problemas, este é o ponto de fuga utilizado por ele para proteger o irmão mais novo da dura realidade. Laub vê como principal desafio lidar com um assunto muito conhecido de todos.

— A linguagem, inclusive, é contaminada por isso. Uma descrição de gol carrega todos os clichês de décadas de crônica esportiva. Universos menos conhecidos tendem a ser mais fáceis de descrever ficcionalmente. Mesmo que a ficção não seja boa, a parte informativa compensa num nível básico e o leitor fica satisfeito por aprender algo que não sabia — explica o escritor, que acredita que há muitos livros sobre futebol no Brasil, mas textos bons, como “Abril, no Rio, em 1970”, de Rubem Fonseca, são raros.


Realidades do futebol

Em “O último minuto” (Companhia das Letras), Marcelo Backes driblou as dificuldades de acesso ao universo do futebol ao optar por um discurso indireto. No livro, o ex-técnico gaúcho João, o Vermelho, está na prisão quando começa a contar a sua história para um seminarista carioca. Ele repassa sua trajetória de vida e no esporte, que caminham como duas realidades paralelas vivenciadas pelo mesmo homem. Backes, que estará na mesa “Gols de letra: ficção e realidade”, no dia 6 de setembro, às 18h30m, também aproveitou sua própria experiência como jogador e técnico amador (comandou a “gloriosa equipe do Seminário São José de Cerro Largo”, nas suas palavras) e torcedor no Rio Grande do Sul.

— A ideia foi se cristalizando aos poucos e a partir de 2006 eu sabia que escreveria o livro. Sempre gostei muito de futebol, sempre sofri muito com o futebol, e o sofrimento é a medida das coisas para mim — lembra o escritor. — O principal desafio de transformar o futebol em ficção é certamente o fato de não conhecermos o que se passa realmente nos vestiários, nos meandros mais escondidos do futebol. O fato de não frequentarmos, de não podermos falar de uma relação que nos envolve pessoal e intimamente como experiência vivida no olho do furacão. Por isso eu mesmo opto por um olhar mediado e distante de seminarista. A mim, o futebol interessa como metáfora, como jogo propício. Nunca se escreveu tanto sobre futebol como hoje, inclusive na ficção, e o que ainda era talvez esteja deixando de ser verdade.

Se na forma de romance o futebol vem se tornando objeto mais frequente apenas nos anos recentes, a crônica sempre foi seu gênero por excelência. Contudo, mesmo entre os grandes cronistas brasileiros o esporte não foi unanimidade. João Máximo identifica um ponto de inflexão a partir de 1958, quando o Brasil conquistou seu primeiro título mundial na Suécia. Foi só a partir desta conquista que nomes como Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade passaram a se dedicar mais intensamente ao tema. Os dois, inclusive, são os protagonistas da mesa “O Botafogo de Paulinho e o Vasco de Drummond”, com Flávio Pinheiro, coordenador dos arquivos do escritor no Instituto Moreira Salles (IMS), e o jornalista Milton Temer, no dia 1º de setembro, às 18h30m.

Antes deles, os principais nomes da crônica esportiva eram Nelson Rodrigues, criador de personagens inesquecíveis, e José Lins do Rêgo. Rêgo, aliás, era um caso bastante particular, pois se tratava de um membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) que escrevia no “Jornal dos Sports”. Flamenguista fanático, ele chegou a chefiar a delegação brasileira na disputa de um amistoso, no início da década de 1950. Sua posição em defesa do futebol lhe valeu, inclusive, uma briga com o modernista Oswald de Andrade.

Bernardo Buarque de Hollanda explica que, a partir dos anos 1930, com a profissionalização do futebol e a construção de grandes estádios nas décadas seguintes, como o Pacaembu em 1940 e o Maracanã em 1950, o preconceito contra o esporte foi alimentado principalmente pela influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) sobre parcela expressiva dos escritores brasileiros. Eles vinculavam os estádios ao “ópio do povo”, à “válvula de escape” e à “alienação das massas”. Um exemplo desse pensamento, avalia o sociólogo, é a peça “Chapetuba Futebol Clube”, escrita por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha.

— Mas, é claro, a crônica sobressai entre os gêneros literários, posto que sua matéria-prima se desenrola à vista de todos, nivela classes indivíduos e grupos, e repercute com novidades de semana em semana. Em termos literários, ela rearticula a dimensão escrita à dimensão oral, cisão tão lamentada pelos críticos europeus da cultura. Como se sabe, um dos maiores feitos do futebol no Brasil é que ele é eivado pelo substrato da oralidade, isto é, ele organiza o cotidiano em torno das conversas públicas, das identidades clubísticas e se posiciona ao redor de um tempo sumamente esportivo: a crônica baliza uma fala estruturada antes, durante e depois do jogo — resume.

No romance de Backes, em determinado momento, o protagonista João, o Vermelho, divaga que o futebol é “o verdadeiro teatro da existência”, a única metáfora possível de dar conta das potencialidades da vida real. Nos 90 minutos de uma partida, há espaço e tempo para vitórias épicas, derrotas trágicas, coexistência de vilões e heróis, às vezes debaixo da mesma camisa. Quando a própria realidade do jogo já é quase irreal, a ficção ainda é possível?

— O fato de ser tão apaixonante torna o futebol uma parte enorme do ambiente cultural, que convida e desafia uma abordagem literária. A literatura não pode ser um simples comentário, como a crônica, nem carrega necessariamente uma tese, como o ensaio. Precisa ter a petulância de escalar o futebol num jogo que é o dela, não o dele, mas sem trair o seu espírito. No fim das contas, acho que o problema não é muito diferente daquele que se enfrenta ao falar, por exemplo, de amor. O amor maiúsculo é um tema espinhoso, um desafio para filósofos, teólogos e psicólogos, mas nada impede um ficcionista de chegar a ele através da história singela de dois adolescentes chamados Romeu e Julieta — arremata Sérgio Rodrigues.

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