O Comitê Olímpico Internacional funciona um pouco como um conclave do Vaticano
O historiador francês Patrick Clastres, pesquisador do movimento olímpico e da história cultural e política do esporte, costuma ser bastante crítico em relação ao Comitê Olímpico Internacional. Ele reconhece, contudo, que o posto de presidente da entidade é de uma complexidade sem paralelo em outra esfera mundial. “O cargo exige se equilibrar entre mais de 200 comitês olímpicos nacionais (dos quais dois terços funcionam em países pouco democráticos) e as poderosas federações internacionais de cada esporte”, explica. E em recente entrevista ao diário “Libération”, comparou: “Ser presidente do COI é praticar uma diplomacia de alta voltagem. É um pouco como ser o Papa.”
Mesmo que se mantenha nosso doce Papa Francisco longe dessa temática, não deixa de ser verdade que o COI funciona um pouco como um conclave do Vaticano. Por razões diferentes, ambos preferem espaçar eleições. Se nos últimos 120 anos o Colégio de Cardeais nomeou onze Papas, o Comitê Olímpico Internacional, no mesmo período, trocou de comando apenas nove vezes — a última delas, na terça-feira, com a eleição do alemão Thomas.
Bach, presidente do Comitê Olímpico Alemão e no seu terceiro mandato de vice-presidente do COI, conhece todos os bastidores e holofotes da entidade. É o primeiro atleta medalhista de ouro (florete por equipes, Montreal, 1976) a ocupar o posto. Franco favorito entre os seis candidatos, não teve a vitória afetada sequer pela exibição de um documentário pouco amigável, na televisão alemã, poucos dias antes.
No documentário, Bach é acusado por um competidor de ter fraudado o sistema elétrico de pontuação numa prova de florete, quatro décadas atrás, usando uma luva molhada. Também é citado numa ficha da Stasi, a polícia política da antiga Alemanha Oriental, como lobista de material esportivo junto a atletas — o que não quer dizer rigorosamente nada — e outros pecadilhos menores. Tudo “bobagens” requentadas, desdenha o retratado.
Uma única estocada do documentário poderia ter ameaçado a candidatura de Bach, embora de aparência inofensiva — exceto para os membros do COI. Em determinado momento do filme uma das figuras mais influentes do olimpismo atual, o sheik Ahmad al-Fahad al-Sabah, da família real do Kuwait, proclama alto e bom som: “Faço o que for preciso para eleger o dr. Bach.”
Pecado mortal. Pelo regulamento da entidade, que há décadas conseguiu higienizar o tráfico de influências e a compra de votos, os membros estão proibidos de manifestar apoio público ou fornecer ajuda externa a qualquer candidatura.
Não que a intensa maratona de campanha por votos não exista. Ela é feroz, inclemente e exaustiva, sobretudo nas campanhas das cidades candidatas a sediarem os Jogos — só não pode deixar rastro. Daí a tensão de Thomas Bach. “O COI é a única organização na qual você se encrenca por dizer a verdade”, resumiu o italiano Gianni Merlo, presidente da Associação Internacional de Imprensa Esportiva.
Na verdade o membro falastrão da dinastia al-Sabah emplacou não apenas o dr. Bach. Foi, também, defensor ardoroso da volta da luta livre ao cardápio olímpico e cabo eleitoral ativíssimo da candidatura vencedora de Tóquio para os Jogos de 2020, contra Madri e Istambul.
Começa então agora um novo ciclo para a entidade com sede em Lausanne. O cirurgião-ortopedista belga Jacques-Rogge, de 71 anos, deixa as contas da casa em ordem. Entrega um fundo de reserva de US$ 901 milhões — bem mais do que os US$ 105 milhões que encontrou em caixa ao assumir a presidência em 2001.
Também entrega para Bach algo que, segundo o historiador Clastres, autor de “Jogos Olímpicos, um século de paixões”, pode vir a servir de laboratório para Jogos Olímpicos do futuro. Atento às mudanças do gosto pelo esporte nos tempos atuais, Rogge vinha procurando integrar disciplinas praticadas pelas novas gerações em detrimento de outras. O que é sempre um baita problema pois mexe com os brios de determinados países com fortes tradições em determinadas modalidades. O pentatlo, a esgrima e o halterofilismo, todas práticas herdadas do século XIX que correspondem à imagem viril do homem ocidental, por exemplo, interessam pouco hoje.
Segundo Clastres, foi pensando nisso que Rogge criou os populares Jogos Olímpicos da Juventude, três anos atrás. Thomas Bach, que assume a presidência com 60 anos, tem mandato de oito anos, renovável por mais quatro, se reeleito. Tem, portanto, doze anos para impulsionar esse experimento e abrir nova marca pessoal à frente do colosso olímpico.
Ele começou tão sensato que soou revolucionário. Na primeira coletiva à imprensa, afirmou ter constatado que, no fundo, todos os dossiês das cidades candidatas se parecem. “Provavelmente foram elaborados pelas mesmas pessoas”, disse, referindo-se aos profissionais do ramo. “Podemos inverter o processo de escolha e começar fazendo perguntas [a cada candidatura]: ‘Como vocês imaginam que os Jogos podem se integrar ao plano de desenvolvimento urbano de sua cidade — ao transporte, à infraestrutura, às questões sociais? Desta forma você tem maiores chances de obter um conceito realmente adequado para determinada sociedade e cultura.” Eureca.
Não foi por acaso que uma parte dos moradores de Istambul festejou a derrota para Tóquio como uma vitória para as prioridades reais da cidade. Nem foi por acaso que Roma retirara sua candidatura no ano passado por considerar irresponsável comprometer US$ 12,5 bilhões na empreitada em plena crise econômica.
Pouco a pouco a voz da rua também alcança o Olimpo.
Dorrit Harazim é jornalista
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