sábado, 14 de setembro de 2013

Alma imortal

Barração de Nunes no Ninho do Urubu e cobrança sem aviso a beneméritos fazem Fla discutir até onde diretoria pode avançar sem prejuízo à identidade rubro-negra
Pedro Motta Gueiros

Na mesma semana em que o vice de futebol do Flamengo, Wallim Vasconcellos, ao comentar a proibição da entrada do ídolo Nunes no Ninho do Urubu, em janeiro, alegou que até Zico seria barrado em nome da privacidade do ambiente de trabalho, sócios-proprietários e beneméritos com serviços prestados souberam que estão devendo ao clube. Pela nova ordem rubro-negra, o boleto chegou antes da aprovação das novas taxas no conselho. Os episódios sugerem que o clube esteja criando dificuldades para que ídolos e grandes rubro-negros se aproximem, mas, por outro lado, o profissionalismo e a austeridade são vistos como forma de revigorar a tradição rubro-negra.

Diante da divergência, se a gestão impessoal e financista é um meio ou o fim em si mesmo, os princípios estão num trecho das "Histórias do Flamengo, livro de Mário Filho, de 1938 "Por que o Flamengo se tornou o clube mais amado do Brasil? Porque o Flamengo se deixa amar à vontade. Não impõe restrições a quem o ama. Aceita o amor do príncipe e do mendigo e se orgulha de um e de outro. Se um flamengo matasse pelo Flamengo, seria um herói; se morresse por ele, um mártir ou um santo. O Flamengo nunca se envergonhou de nenhum jogador que lhe vestisse a camisa" O jornalista era uma caixa de ressonância antes de dar nome ao estádio, mais conhecido como Maracanã. Narrador do mito original do futebol carioca, ao cobrir de drama e lirismo uma historiografia até então inexplorada, suas palavras ainda ecoam de forma provocadora.

Quarenta e sete anos depois de sua morte, que se completam depois de amanhã, Mário é atual como o debate que se instalou no Flamengo sobre o desafio de modernizar o clube sem perder sua identidade. - Não tem nada disso. Estão confundindo organização com elitização - disse Zico, disposto a ampliar os limites da discussão. - Tem que facilitar para o povão, mas o Flamengo de hoje não é só Rio, é Brasil, é mundo. Se o time tem 19 jogos como mandante, deve fazer cinco fora do Rio. Ao ceder sua imagem ao programa sócio torcedor em troca do valor da primeira mensalidade, o ídolo trabalha para que o clube não fique fechado nas brigas políticas que segundo ele teriam amplificado a barração de Nunes num treino em janeiro. - Todo clube tem normas para serem respeitadas. É preciso que haja sensibilidade. Defendo que todo ex-atleta tenha o direito de visitar o clube. Soube de casos de outros jogadores que não puderam entrar na Gávea - disse Zico, ao rejeitar o papel de garoto-propaganda da atual diretoria. - Não tenho nenhum compromisso. Meu contrato é com a empresa que explora o programa, não recebi um centavo ainda.

Valores além do dinheiro

Além das dívidas, o Flamengo trabalha para se liberar da nostalgia de um tempo em que as ondas do rádio e a mitologia de Mário Filho carregavam o imaginário com tintas rubro-negras. A mística já não basta. Enquanto o rio de anunciantes corre para São Paulo, só a excelência esportiva fará o rubro-negro conservar o título de mais querido do Brasil - O Flamengo se dividiu, parece que o futebol não é prioridade. Você pode não ter casa, luz mas tem que ter comida. Para se sustentar, o Flamengo precisa de apoio popular e de um grade time, que hoje não tem - disse o ex-craque e treinador rubro-negro Evaristo de Macedo, ao estender o lamento à forma com que o clube passou a taxar os sócios isentos. - A gente sabe que o clube tem necessidade, o valor é irrisório, mas podiam avisar. Os valores em questão vão além dos R$ 10 por dependente ou R$ 12 para manutenção do clube. Ao tratar os sócios como fonte de renda, a diretoria se esquece que num clube muitas situações se resolvem na conversa. - Quando era presidente, meu pai (George Helal) percebeu que o Bebeto estava triste e trouxe seus nove irmãos de Salvador - disse Ronaldo Helal, sociólogo especializado em esporte e acima de tudo rubro-negro. - É preciso que haja razão para administrar a paixão, mas o Flamengo não pode ser tão frio. As ações não estão erradas. A condução revela falta de habilidade. Parafraseando Tom Jobim, o Flamengo não é para principiantes. A expectativa de uma gestão revolucionária remonta aos anos 1970, quando a Frente Ampla pelo Flamengo chegou ao poder às vésperas da fase mais vitoriosa do clube. Muitos brilhantes, quase todos arrogantes, os jovens tinham a presunção de que só eles sabiam o que era melhor para o clube até que o início da gestão fez o grupo pedir socorro a quadros da gestão anterior. Por mais que o passado seja condenado pelo endividamento do clube, há muitas conquistas que precisam ser preservadas. Além da sala de troféus, do patrimônio físico e do balanço contábil, o Flamengo é feito por algo que não pode ser medido. Assim como os deuses do futebol, a alma rubro-negra só existe para quem acredita nela. Na dificuldade de localizar aonde se forma o caráter de um clube, Zico disse "já tive a sorte de pegar assim e conseguimos ajudar a aumentar. Caiu no agrado do povo, não tem volta". Para Evaristo, a alma está na camisa, que "anda meio vazia, mas faz quem a veste se sentir um super-homem". Com a ajuda das ciência sociais, Helal lembra que o patrimônio imaterial do Flamengo não tem dono. - O torcedor jamais vai deixar essa identidade morrer. A tese se confirmou na vitória sobre o Cruzeiro pela Copa do Brasil, quando o mar vermelho e preto invadiu o novo Maracanã com a força de uma paixão represada. Para quem teme pela alma rubro-negra, o conforto vem da mitologia. O Flamengo é sempre mais poético, popular e vigoroso quando se aproxima do gigante Mário Filho.

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