sábado, 8 de setembro de 2012

O lugar do torcedor


  

No caminho para a Copa do Mundo de 2014, o Brasil investe na modernização dos estádios, mas ainda busca uma forma de combater a violência de facções organizadas. Em meio a planos de reformulação e antigos problemas, que cara terão as novas arquibancadas do país?

Por Pedro Sprejer
Nas últimas semanas, dois assuntos têm causado repercussão no universo futebolístico. O primeiro é o anúncio de que, em outubro, o governo estadual lançará, enfim, o edital para a concessão do novo Maracanã, que poderá ter Flamengo e Fluminense como parceiros da iniciativa privada na administração. Outro tema, discutido dos noticiários aos botecos, é a enérgica ofensiva do poder público contra a violência de torcidas organizadas no Rio e em São Paulo, suspensas e banidas dos estádios.

Quando sobrepostos, o renascimento do Maracanã reconfigurado, carro-chefe de uma série de novas arenas em construção para a Copa de 2014 (como o Itaquerão, em São Paulo), e o combate à violência nos estádios — e fora deles — sinalizam um momento de mudanças no futebol nacional. Nesse novo cenário, qual será o lugar do torcedor comum e do modo de torcer “à brasileira”?



De acordo com o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda, autor de “O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro” (7Letras), o primeiro registro de incidentes fatais entre torcidas no Brasil ocorreu em 1988, com o assassinato premeditado do presidente-fundador da palmeirense Mancha Verde. Sete anos depois, o rápido agravamento dos conflitos levou a Justiça paulista a banir torcidas violentas, após o episódio conhecido como “batalha campal do Pacaembu”, durante um jogo entre Palmeiras e São Paulo. No Rio, a mesma estratégia foi tentada na época. Nos dois casos, as medidas não tiveram o efeito esperado: as torcidas paulistanas ressurgiram como escolas de samba e as cariocas recuperaram na Justiça o direito a entrar nos estádios. 

No mês passado, após as mortes de um vascaíno e de um flamenguista, a Justiça suspendeu por seis meses a presença da Torcida Jovem do Flamengo e da Força Jovem do Vasco nos estádios do Rio. Ainda em agosto, 21 integrantes da Young Flu foram presos por agressão a torcedores vascaínos antes de um clássico do Campeonato Brasileiro. No último ano, mais de 370 torcedores foram presos no Rio, segundo dados do Grupamento Especial de Policiamento em Estádios (Gepe).
 

Para Buarque, medidas como essas podem ajudar a conter a “espiral de violência” entre torcidas e mostram a necessidade de um debate público sobre a relação entre as organizadas e os grandes clubes:
 

— Estamos vivendo os efeitos perversos deste tipo de política clubística — diz Buarque, lembrando que, desde os anos 1990, as instituições distribuem milhares de ingressos a torcidas organizadas. — Isso as fortaleceu e, ao mesmo tempo, as inchou. O agigantamento dessas torcidas fez com que elas se desmembrassem em subpoderes territoriais. Estes levaram os conflitos para longe dos estádios, mais precisamente para os bairros de origem dos torcedores.


Autor de “Ronaldo: glória e drama no futebol globalizado” (Editora 34), o historiador Jorge Caldeira atribui o aumento da violência no futebol a um “declínio civilizatório” ocorrido nas últimas décadas, dentro e fora dos estádios. Para Caldeira, ainda há uma grande indefinição sobre a forma como os gestores das novas arenas — pautadas pelas normas de conforto e segurança da Fifa — vão lidar com a questão. Torcedor da Portuguesa de Desportos, ele espera que as medidas para coibir a violência não passem pela elitização do estádio ou pela descaracterização de um modo de torcer à brasileira:

— Quem tem que ser protegido é o torcedor que quer se divertir, seja pobre ou rico. Isso precisa ser levado em conta por essas arenas. O grande torcedor da Lusa é o Sardinha, um cara cuja vida é ir para os jogos. O estádio não tem a mesma graça sem ele.
 

O paradigma mundial de controle da violência e dinamização econômica do futebol foi a transformação da Liga Inglesa, ocorrida a partir de fins dos anos 1980. A mudança radical nasceu de um trauma. Na verdade, uma tragédia anunciada: a morte de 96 torcedores asfixiados contra um alambrado em um superlotado Liverpool x Nottingham Forest, pela Copa da Inglaterra, em 1989.


Pondo fim a um longo declínio econômico e combatendo severamente o “hooliganismo”, o futebol inglês conseguiu, ao longo dos anos 1990, criar uma liga bilionária, turbinada pelo boom imobiliário dos novos estádios e por frondosas cotas de TV. Com isso, tornou-se um case de sucesso para o mundo, mas afastou parte do público tradicional e, como define o jornalista e escritor inglês radicado na Espanha John Carlin, “aburguesou-se”.


Tim Vickery, jornalista esportivo e correspondente da BBC no Brasil, frequentou os antigos estádios ingleses, ainda com preços populares, arquibancadas sem cadeiras e torcedores amontoados feito gado nos jogos mais importantes. O novo paradigma, diz Vickery, conseguiu conter a violência, pelo menos nos estádios. Mas, com preços inflacionados, acabou por renegar uma massa de torcedores tradicionais. O outro lado da moeda foi que mulheres, crianças e imigrantes de outras etnias, antes repelidos pelos arruaceiros mais sectários, ganharam acesso aos estádios: 

— Houve exclusão, porém a inclusão de novos grupos foi maior e mais importante — aponta Vickery. — Só que o Brasil vive outra realidade, não pode copiar a Inglaterra. Aqui não há minorias étnicas proibidas de ir ao estádio. Muita gente poderá ser excluída pelos preços nesse processo, sem muitos ganhos em contrapartida.
 

O preço dos ingressos nas futuras arenas como o novo Maracanã e o Itaquerão ainda não foi definido, mas Vickery acredita que um aumento seria um erro estratégico no Brasil, uma vez que já vem sendo difícil encher estádios com os preços atuais. Em 2011, a média de público do Campeonato Brasileiro foi de 14.976 torcedores, enquanto a da Major League Soccer norte-americana, por exemplo, foi de 17.870 pagantes.
 

— Uma solução interessante seria fixar preços mais baixos para o ingresso e ganhar em cima de comida e bebida — sugere.
 

Caso o cronograma da obra se confirme, o novo Maracanã abrirá os ainda majestosos portões no dia 28 de fevereiro de 2013. Com capacidade reduzida para 79 mil lugares, poltronas de cinema, novos camarotes, áreas VIP (e até mesmo VVIP), será um estádio distinto de seu antecessor, do qual ostentará apenas a carcaça, como reza a cartilha do retrofit arquitetônico. Aquele que já foi “o maior estádio do mundo”, erigido sob o signo da grandiosidade nacional e da união das massas sublimada pela catarse futebolística, cederá lugar à moderna arena de espetáculo, com maior conforto, segurança e infraestrutura, telões de última geração e lojas em espaços anexos.


Estádios para poucos, pay per view para cada vez mais espectadores e TV aberta para a massa: será essa a nova lógica do espetáculo futebolístico? Autor de “Passes e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil” (Vozes) e professor do departamento de Comunicação da Uerj, Ronaldo Helal aponta o crescimento do público espectador nos bares, mas acredita que há um contingente de torcedores, em parte oriundos da nova classe média, dispostos a pagar um pouco mais por um estádio mais sofisticado: 

— O torcedor paga mais caro se o estádio é arrumado. É preciso ter preços mais populares, sim, mas as pessoas estão com mais dinheiro também — acredita Helal.
 

Autor de “Veneno remédio: o futebol e o Brasil” (Companhia das Letras), José Miguel Wisnik evoca o fantasma do “geraldino” — torcedor popular da extinta geral do Maracanã — para ilustrar uma transformação no conceito dos estádios.
 

— Em “Garrincha, alegria do povo”, de Joaquim Pedro de Andrade, os protagonistas do filme são Garrincha e o povo, unidos no Maracanã. O torcedor da geral é a cara de uma era do Brasil que já terminou. A reformulação estrutural do estádio arremata esse processo, que já vem se dando faz tempo, no mundo, com a substituição do estádio caldeirão social pelo estádio de facilidades ao consumidor.
 

Bernardo Buarque acredita que, mesmo em arenas projetadas para outro modelo de espetáculo, é possível reviver e reinventar a vibração e a alegria que marcaram as arquibancadas do país:
 

— Por mais que seja constatada a tendência a elitizar, a atomizar e a individualizar a experiência de torcer nos estádios, é sempre possível subverter, recriar e carnavalizar as formas estandardizadas — diz Buarque.

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