segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

"O calendário do futebol gera desemprego sistêmico", diz Ricardo Borges Martins



Ricardo Borges Martins, diretor executivo do Bom Senso FC (Foto: Emiliano Capozoli)


O diretor executivo do Bom Senso FC critica o modelo que deixa 60% dos jogadores brasileiros desempregados após os campeonatos estaduais

RODRIGO CAPELO
22/02/2016 - 08h05 - Atualizado 22/02/2016 09h11


Futebol: fábrica de ilusões (Foto: Arte ÉPOCA)
Do 14ª andar de um dos vários prédios que fizeram Alphaville parecer São Paulo, Ricardo Borges Martins puxa as poltronas brancas da sala para o lado para dar espaço à câmera de ÉPOCA. Acabara de chegar de uma reunião com João Paulo Medina, preparador físico que fundou a Universidade do Futebol, com quem debate a criação de um plano diretor para o futebol brasileiro nos dez anos entre 2016 e 2025. Troca de camisa, passa o fio do gravador por entre os botões e se prepara para recomeçar o diagnóstico do esporte mais querido do país.
Formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), Ricardo foi escolhido no fim de 2013 por jogadores como AlexJuan eDida, todos com histórico na Seleção Brasileira e em alguns dos clubes mais populares do país, para representá-los. Como diretor executivo do Bom Senso FC, fundado para militar pelo desenvolvimento do futebol brasileiro, cumpre o papel de formatar, em conjunto com os atletas, propostas para modificar o sistema.
A primeira conquista do grupo veio em 2015 – parlamentares tiveram o bom senso de incluir no Profut, lei federal que permite a renegociação de dívidas fiscais, exigências que clubes terão de cumprir para alongar o endividamento e receber verba dos generosos patrocínios da Caixa. Restrições aos gastos e prejuízos dos times, em teoria, devem melhorar a vida do atleta. O próximo passo é reformar a temporada. "Hoje, o calendário gera desemprego sistêmico em massa", explicou à reportagem em uma hora e meia de conversa.
ÉPOCA – O que é o Bom Senso FC?
Ricardo Borges Martins – 
 É uma organização social de interesse público. Com esse título que conseguiu no Ministério da Justiça, nós somos hoje uma espécie de think and do tank (uma entidade que estuda um tema e também atua nele) que reúne profissionais do futebol. Somos conhecidos pela nossa liderança de atletas e ex-atletas que defendem bandeiras e trabalham pela implementação dessas bandeiras no futebol brasileiro. Nosso objetivo principal é o desenvolvimento do futebol brasileiro.
ÉPOCA – Como o Bom Senso FC foi formado?
Martins –
 O movimento começou em setembro de 2013, numa conversa entre o Alex [então no Coritiba] e o Juan [então no Internacional] ao final do jogo em que o Inter estava passando por um período de 12 dias com cinco jogos, sem poder treinar, e os jogadores começaram a conversar sobre os problemas do calendário. Dessa união dos jogadores, de chamar mais gente para debater propostas de mudança para o futebol brasileiro, nasceu o Bom Senso com protestos em campo e consolidação de duas bandeiras. Uma o calendário. Nós temos uma proposta para resolver o problema dos calendário no Brasil. E outra com fair play financeiro, que bem ou mal se desenrolou e está sendo implementado agora no Profut. De lá para cá nos formalizamos como associação, como organização sem fins lucrativos, e hoje estamos desenvolvendo em parceria com a Universidade do Futebol um plano diretor para o futebol brasileiro. Um plano para os dez anos do futebol brasileiro.
ÉPOCA – Qual o diagnóstico que vocês fazem do futebol brasileiro?
Martins –
 Os clubes no Brasil são altamente deficitários há muito tempo, são geridos de forma amadora, seus dirigentes não são responsabilizados. Historicamente não temos sequer um caso de dirigente responsabilizado por caso de má gestão. São muitos casos de atrasos de salários, e aí não só para atletas, mas para funcionários de diversos clubes. E bem ou mal os clubes sempre conseguiram se livrar de pagar dívidas, pelo menos as dívidas com a União, porque sempre aparecia um novo refinanciamento.
ÉPOCA – O que vocês defendem em relação à gestão dos clubes?
Martins –
 O que a gente quer são clubes mais profissionais, geridos por pessoas do ramo, pessoas que não queiram se aproveitar do futebol, mas que sejam qualificadas e que queiram contribuir para o desenvolvimento do futebol brasileiro. E que os clubes consigam no médio prazo e no longo prazo competir com as grandes forças internacionais. Não tem por que no Brasil com o PIB que tem, com a importância que o futebol tem, a gente se limitar a esse papel tão marginal no cenário internacional do futebol.
ÉPOCA – Como vocês avaliam o calendário do futebol nacional?
Martins – 
Hoje o calendário essencialmente gera desemprego sistêmico em massa. Na casa dos 80%, 70% dos jogadores ficam desempregados por quase oito meses ao longo do ano. Dos 700 clubes profissionais, dá para dizer que 600 têm calendário só por três, quatro meses, e do outro lado os clubes de elite têm jogos em excesso. Quando a gente compara com a liga inglesa, um dos países que mais tem jogos, o Brasil tem 40% a mais de jogos no ano, tendo muito menos tempo de preparo, aperfeiçoamento técnico e físico, portanto prejudicando o espetáculo aqui. O que a gente quer é equilíbrio do calendário. Que os clubes grandes tenham menos jogos e mais tempo de preparação. E que os clubes de menor porte, do interior, possam ter calendário mais extenso para oferecer emprego e oportunidade de geração de receita e de profissionalização para os jogadores empregados por eles.
ÉPOCA – Quatro em cada cinco jogadores de futebol ganham até R$ 1.000 por mês. E menos de 1% ganham acima de R$ 50.000. Por que há tanta diferença?
Martins – 
A grande questão sobre salários no mundo do futebol é a discrepância entre o que se imagina, o que a opinião pública imagina que são os salários dos jogadores de futebol, e o que é a realidade. A realidade da maior parte dos jogadores é a realidade da maior parte dos setores do mercado de trabalho do Brasil. Você tem uma grande pirâmide, uma base muito mais volumosa e um topo, uma elite, muito bem remunerado. A questão é que o futebol está muito em evidência, os jogadores de elite estão muito em evidência, os salários são sempre muito expostos, e eles também são muito expostos em função disso.
ÉPOCA – A questão salarial é uma bandeira do Bom Senso?
Martins – 
Ao nosso ver o mais importante, do ponto de vista salarial, é que os jogadores sejam remunerados. A gente sabe que a remuneração é baixa para grande parte desses jogadores, sim, mas o que é mais grave, e o que deve ser punido e combatido, que a CBF e as entidades de administração do futebol e prática, os clubes, têm que endereçar, é a falta de pagamento. Porque se a gente acha dramático o sujeito ficar oito meses desempregado ao longo do ano, você imagina ficar desempregado tendo recebido um só dos quatro que ele trabalhou.
ÉPOCA – Por que atletas persistem no futebol?
Martins – 
O agravante é que ser jogador de futebol, para todos, para nove entre dez crianças no Brasil, sempre foi um sonho. Por mais que ele se encontre num clube da Série B, da Série C de um Campeonato Estadual de um estado sem muita expressão, ele está realizando um sonho dele. Ele acredita que um dia ele pode, sim, chegar a um grande clube. E, como em nenhum momento esse problema é resolvido, ele continua ali dentro do clube imaginando que um dia ele vai sair dali, chegar à Série A, sair do país para um mercado emergente, um mercado estabelecido. O futebol acaba se tornando uma fábrica de ilusões para a maior parte de pessoas que deixa de se profissionalizar em outras áreas para arriscar a vida no futebol sabendo que é muito difícil chegar ao topo nessa estrutura.
ÉPOCA – Quais relatos vocês já ouviram de atletas em relação à jornada dupla: jogar futebol e ter outras profissões?
Martins –
 A maior parte trabalha e joga futebol ao mesmo tempo. Isso aconteceu. Teve até um caso, um jogador de Roraima que trabalhava numa olaria, acordava às 4h para trabalhar, saiu do trabalho às 18h correndo para disputar um jogo às 20h, o time foi campeão da Série A do Estadual, e o jogador desmaiou ao final do jogo. Não só por emoção, mas porque estava morto. Acordou às 4h da manhã, trabalhou numa olaria, que é um trabalho físico pesado, e depois jogou um jogo de 90 minutos. Você tem uma série de casos como esse, o jogador que tem que trabalhar, senão não tem nenhuma remuneração, e joga apostando que um dia vai se tornar profissional, vai conseguir ascender ao topo da pirâmide.
ÉPOCA – Os salários baixos refletem clubes sem condições financeiras. Por que os times da base da pirâmide são tão pobres?
Martins – 
Em boa parte porque o público, a audiência, aqueles que consomem e fazem do futebol uma indústria, se concentram na elite do futebol. O que explica um Flamengo ter a receita que tem, um Corinthians ter a receita que tem, é a quantidade de pessoas interessada nisso, por notícias sobre isso, que assistem aos jogos, que compram camisetas. E os clubes menores, por não terem essa atenção, essa exposição, acabam tendo muito menos recursos. Eu não diria que é natural, mas é compreensível, numa lógica como essa, que os recursos venham da exposição, que os clubes menores tenham receita muito inferior.
ÉPOCA – O que o Bom Senso já conseguiu conquistar em relação aos salários?
Martins – 
O que a gente sempre defendeu é que os clubes precisam arcar com aquilo que foi acordado com o jogador. Os salários precisam ser pagos em dia. Nós defendemos, dentro de um sistema de fair play, que os clubes precisam, e hoje isso já está estabelecido em lei, apresentar para se inscrever nos campeonatos uma série de documentos que comprovem que os salários estão em dia. Que pelo menos naquele último ano, não é que o clube não pôde atrasar um ou dois meses, mas que no último ano as obrigações trabalhistas foram pagas. Não só as trabalhistas, mas as de direito de imagem, que a gente sabe que mesmo em clubes do interior, que não usam a imagem do atleta, boa parte dos salários também é paga em direito de imagem. Isso está no Profut por reivindicação nossa.
Outra reivindicação nossa que entrou no Profut, mas não como a gente queria, é a limitação do custo do futebol. É uma espécie de teto salarial, mas, em vez de ser individual e fixo, é variável, de acordo com o orçamento do clube, e é coletivo, pega a folha inteira e não só para um. Defendíamos com base em uma série de estudos e com base no padrão internacional que fosse limitado em 70% do orçamento do clube, ou seja, o clube teria que reservar 30% do seu orçamento não só para pagar dívidas, mas para investir na sua base, investir na sua infraestrutura. Não entrou assim no Profut. Entrou com 80%. Mas, enfim, faz parte também do próprio processo legislativo. Não era só o Bom Senso que estava sendo ouvido, pelo contrário, havia muita gente sendo ouvida. E acabou ficando 80% para os clubes que aderirem de fato ao refinanciamento.
Ricardo Borges Martins, diretor executivo do Bom Senso FC (Foto: Emiliano Capozoli)
ÉPOCA – Onde vai parar todo o dinheiro que os clubes de elite arrecadam? Esse dinheiro deveria escorrer até os clubes da base da pirâmide, não?
Martins – 
Boa parte desse dinheiro acaba com empresários, principalmente de grandes talentos em que fundos se juntam. Por mais que Fifa e CBF tentem lidar melhor com essa questão dos empresários no futebol, a gente sabe que eles são muito presentes, eles têm um poder de investimento às vezes maior do que o dos clubes. Na hora de fazer a seleção de atletas, os famosos olheiros, os próprios empresários também têm olheiros e conseguem fazer um investimento na carreira do atleta que é muitas vezes mais profissional do que o clube.
ÉPOCA – Como o Bom Senso vê a figura do empresário, especificamente? Ele precisa ser expurgado do futebol?
Martins –
 Não é só uma questão de vilanizar o empresário, mas entender que os empresários hoje conseguem oferecer um serviço que clubes não conseguem oferecer. De oferecer segurança para a carreira do jogador. É claro que existem maus exemplos, mas existem bons exemplos. Digo isso porque ficou costumeiro falar mal de empresários, e eles não são os únicos vilões. A ascensão dos empresários se deu muito pela fraqueza econômica e de gestão dos próprios clubes no Brasil. Se eles fossem mais bem geridos, administrados, haveria menos espaço para que empresários lucrassem com essas transferências.
ÉPOCA – Há mais lugares em que dinheiro é desperdiçado no futebol?
Martins – 
Boa parte do dinheiro que entra também acaba indo para dívidas. Os clubes brasileiros são altamente deficitários. Os EBITDAs [saldo de receitas menos despesas antes de impostos], quando analisados, são quase sempre negativos. Se não me engano de 2014, dos 20 clubes da Série A, 12 tiveram EBITDA negativo, e isso é uma prática recorrente, muito em função da baixa responsabilização dos dirigentes. Existe uma lógica no Brasil do dirigente que assume com mandato curto de querer marcar época à frente do clube ganhando títulos. Existe uma mentalidade de curto prazo e de cobrança por resultado esportivo que acaba prejudicando a gestão de longo prazo.
ÉPOCA – Como é a experiência de atletas que cobram na Justiça salários devidos?
Martins –
 A experiência dos atletas na Justiça, quando entram com ação contra um clube que não pagou, não cumpriu o contrato, costuma ser exitosa, mas demora demais. Já dizia o ditado que Justiça que tarda não é Justiça. Tem inúmeros casos de jogadores que foram receber depois de dez, 15 anos. E aí vale muito ressaltar o baixíssimo desempenho que os sindicatos têm com relação ao atraso de salários. Os sindicatos do Brasil de maneira geral nunca conseguiram criar mecanismos para que os atrasos fossem impedidos.
ÉPOCA – Por quê?
Martins –
 Porque para os sindicatos e escritórios de advocacia que orbitam em torno dos sindicatos é relativamente importante você continuar a ter casos para resolver. Os sindicatos nunca tomaram uma decisão que realmente fosse resolver o problema porque o problema, o atraso de salários, é a solução deles. É onde eles conseguem fazer contratos com outros escritórios de advocacia que ganham dinheiro em cima disso. Existe uma indústria da Justiça esportiva brasileira que trabalha só com atraso salarial.
ÉPOCA – Qual o tamanho disso?
Martins – Difícil estimar o tamanho desta área do direito desportivo que trabalha especificamente com atrasos salariais. O que a gente sabe é que dentro da área de direito desportivo é uma das que mais lucram, que mais recebem, porque os casos são muitos, as questões trabalhistas no Brasil costumam respaldar o trabalhador, isso justamente. Mas é válido considerar aí que em toda a estrutura do futebol, nunca se fez nada para solucionar atrasos salariais porque muita gente se beneficia dos atrasos, e sem dúvida não são os atletas.
ÉPOCA – O Bom Senso tem capacidade de paralisar o futebol brasileiro?
Martins –
 Vou te dizer que uma ação desse tipo, além de requerer respaldo jurídico que o sindicato deveria dar, depende muito de momento. O Bom Senso tem uma estrutura de organização do terceiro setor, de organização social, consegue ajudar, sim, eventualmente, um caso ou outro, mas não é essa nossa atuação principal. Nossa atuação principal é na defesa de bandeiras para o futebol brasileiro com os tomadores de decisão, seja da esfera pública ou privada. Eventualmente essa união dos jogadores que o Bom Senso de alguma forma materializa ou se torna emblema pode levar a algum tipo de paralisação, mas isso não está no nosso escopo de atuação. É uma eventual consequência, mas muito mais dependendo de circunstâncias do que programática.
ÉPOCA – Os protestos que atletas do Bom Senso já fizeram repercutiram muito na mídia. Há algum efeito prático além disso?
Martins – 
Normalmente o efeito de protestos em campo, ou mesmo de notas que o Bom Senso publica, ou declarações dos atletas, têm impacto, sim, porque a opinião pública impacta muito os tomadores de decisão. Eu acredito que quando os torcedores no Brasil quiserem realmente ver mudança radical na maneira como clubes são geridos, como o futebol é gerido, eles organizados podem fazer diferença. Mas não é cobrando resultados de dirigentes em campo. É cobrando boa gestão, cobrando transparência, cobrando espaço para que torcedores consigam participar da tomada de decisão da vida do clube – em algum grau, é claro.
ÉPOCA – Você acredita nisso?
Martins –
 É um pressuposto de quem trabalha com esse ramo de atividade acreditar que opinião pública tem muito peso, influencia, sim, tomadores de opinião. O Profut está aí para mostrar que a pressão que as pessoas fizeram para a aprovação da MP que virou o Profut foi fantástica. Tivemos na nossa campanha digital mais de 20 mil e-mails enviados para deputados, senadores e também para o Executivo de pessoas pedindo a aprovação do Profut. Recebi telefonemas de deputados reclamando e de deputados parabenizando. O Brasil como um todo, não só o futebol, precisa, sim, acreditar na pressão que a sociedade civil pode fazer e do peso que ela pode ter no tomador de decisão

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